"O irônico é uma vampira que sugou o sangue de seu amante e o abanou com frescor, o embalou até dormir e o atormenta com sonhos turbulentos" (Soren Kierkegaard. In: The Concept of Irony).

domingo, 24 de janeiro de 2010

Sociedade



O homem disse para o amigo:
– Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.

O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.

O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.

Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
– Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.

No caminho o homem resmunga:
– Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: – Que idiota.

– A casa é um ninho de pulgas.
– Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.

E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Nova Reunião: 19 livros de poesia.
Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1983, p. 31.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Sem ilusões



Não, não pensem que existe um outro mundo! Pensem nas suas possibilidades aqui e agora! Reconheçam o valor deste mundo, pois só há este e ele é cruel, cheio de tragédias diárias. Ligue a TV e verás que “eles” só falam da violência, de sangue e mortes. Isto dá audiência! A morte dá audiência, muito mais até do que a vida! Ficamos ali à frente do aparelho (de controle), muitas vezes chorando, com pena e pensando o quanto é bom estar vivo. “Antes ele do que eu?” Mas, até quando?
Nos últimos dias, tanto a Tv quanto os jornais impressos e a internet vem noticiando as nossas tragédias líderes de audiência do momento. A Tragédia de Angra - na qual deslizamentos de terra causaram dezenas de mortes na madrugada do dia 1º de janeiro – foi disputada pelos canais de televisão exaustiamente. Quem tivesse o melhor depoimento, a melhor foto, o melhor texto (tem que ser uma novelinha, senão não emociona) levaria a audiência. Quem ganhou? Não sei!! Ou melhor, será que temos um vencedor numa situação dessas? Só sei que quando achávamos que o pior já havia acontecido neste ano novo, veio um terremoto no Haiti para nos fazer esquecer dos mortos do Rio de Janeiro. Agora são os pobres haitianos que estão na mídia, que estão na mira. São eles que alavancam a audiência dos canais televisivos, sites na internet e nos fazem refletir sobre a vida, o viver.
Ah, mas você pode me dizer que não assiste TV, tudo bem, seu vizinho, sua namorada, sua empregada, seu pai ou qualquer outro lhe contará tudo e, com detalhes. Você saberá que foi um terremoto de magnitude 7 na escala Richter que atingiu o Haiti no último dia 12 e que ele é o mais forte a atingir o país nos últimos 200 anos. O número de mortos não é conhecido com precisão, embora fontes noticiosas afirmem que pode chegar aos 200 mil, e o número de desabrigados pode chegar aos três milhões. Mas, será que o país mais pobre do hemisfério ocidental, com 80% de sua população vivendo em extrema pobreza, com menos de US$ 2 por dia, está passando pelo seu pior momento?
Um dado positivo: O Haiti foi a primeira república negra do mundo a declarar sua independência. Que bom!! Mas, não nos esqueçamos que 45,2% da população é analfabeta; a expectativa de vida é de apenas 60,9 anos; possui mais de 300 mil crianças órfãs; dois terços dos haitianos dependem do setor agrícola e são vulneráveis aos danos ocasionados por desastres naturais, agravados pelo desmatamento; o governo haitiano depende de ajuda internacional para seu sustento fiscal; o narcotráfico corrompeu o sistema judicial e as forças policiais; durante décadas, o Haiti viveu sob o poder dos governos brutais de François "Papa Doc" Duvalier e seu filho, Jean-Claude, conhecido como "Baby Doc"; o Haiti prossegue afetado por confrontos violentos entre gangues e grupos políticos rivais. Tudo isso levou a ONU a classificar a situação de direitos humanos como catastrófica. Cansou? Espero que não, porque em 2008, o Haiti foi atingido por uma série de tempestades e furações que deixaram cerca de mil mortos, mais de 800 mil pessoas desabrigadas e causaram prejuízos de mais de US$ 1 bilhão. O país também importa a maior parte da comida que consome o que fez com se tornasse um dos países mais atingidos pela crise alimentar causada pela alta nos preços dos alimentos...
Eu poderia ficar anos aqui mostrando a todos o quanto o Haiti é um país acostumado às tragédias, o quanto aquele povo sofre e o quanto ainda sofrerão. Entretanto, “contra fatos não há argumentos”, e o que nos resta é acreditar (sem ilusões) que no lugar daqueles escombros serão levantadas escolas, igrejas, casas... O que nos resta é acreditar (sem ilusões) que as toneladas de alimento que se encontram em galpões improvisados serão distribuídas a tempo, antes que a fome faça sua parte neste teatro de horrores. O que nos resta é acreditar (sem ilusões) que ainda há sobreviventes.
O que nos resta fazer????

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Haiti (Caetano Veloso e Gilberto Gil)



Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui.