"O irônico é uma vampira que sugou o sangue de seu amante e o abanou com frescor, o embalou até dormir e o atormenta com sonhos turbulentos" (Soren Kierkegaard. In: The Concept of Irony).

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Carpe diem

aproveita o momento

quando os olhos falam uma língua 
que a língua não sabe
quando as mãos seguram o instante
como se fossem avaras de eternidade
quando os ouvidos apenas suportam
a música dos ansiados passos
e há um único aroma que se não repugna
quando o teu sorriso é o reflexo
do sorriso à tua frente
quando as estrelas são todas convocadas
para iluminar o rosto desejado
então é a hora o minuto o segundo
de fechar os olhos e ganhar asas

aproveita o momento

a vida só é curta quando não subimos
o estribo da carruagem que parte
quando ficamos a ver passar todos os comboios
a vida só é aventura quando se busca a ventura
que não tem pés para vir ter connosco
é preciso partir dar as mãos ao inédito
e assumir que quando caminhamos
nem todo o terreno é um pântano assustador
é preciso acreditar

aproveita o momento

porque outros momentos virão
em que nada pode acontecer
porque o tempo resvala inexorável
e o instante seguinte é muito tarde
e pelo menos tão desconhecido quanto este
porque os cabelos encanecem
e as mãos ficam murchas de esperança
e o peito qualquer dia é um assento de pedra
porque só agora é agora e logo o sol já se deitou
e amanhã já perdeste metade dos ensejos

aproveita o momento
e eterniza-o o mais que puderes
aproveita o momento
e dá-lhe as boas vindas
sorri-lhe manda-o entrar
e adormece no seu ombro.


MONTEIRO, Anthero. Carpe diem. In: Sete Vezes Sete Nuvens. Porto: Egoiste, 2010

sábado, 25 de setembro de 2010

É proibido fumar??

Meu marido comentou com sua amiga, a fotógrafa Carol Garcia (www.flickr.com/photos/carol_garcia), que casamento é, acima de tudo, cumplicidade. Ou melhor, é dividir com o outro que temos de melhor e pior. Se algum dia ele resolvesse, por exemplo, assaltar um banco, só a sua esposa saberia e vice-versa. Carol, então, nos indicou o filme É Proibido Fumar, escrito e dirigido por Anna Muylaert, e lançado em 4 de Dezembro de 2009. Por ter sido indicado por ela, uma pessoa inteligente e extremamente sensível, criamos uma grande expectativa em assisti-lo. Porém, na primeira tentativa, só conseguimos assistir uns dez minutos do filme... Nos distraímos, e acabamos conversando sobre nós... Não tenham dúvidas: é este um dos objetivos do filme!!!

Uma semana depois, decidimos que iríamos assistir ao longa metragem indicado por Carol. E o que encontramos? Primeiro, o ângulo da filmagem é extremamente atual. Às vezes, pelo movimento das pernas dos personagens conseguimos entender o que se passa com eles. Em segundo lugar, a trilha sonora é de primeira qualidade, com várias canções da Música Popular Brasileira (MPB), como "Taj Mahal" de Jorge Ben Jor, "Baby", de Caetano Veloso e "Filhos de Gandhi" de Gilberto Gil. E, em terceiro lugar, e o mais importante para nós, a cumplicidade existente entre Max e Baby, interpretados pelo cantor e compositor, Paulo Miklos (Titãs) e pela atriz, Glória Pires, respectivamente. A última cena do filme é maravilhosa, única, e diz muito sobre o amor!

Assistimos, nos vimos e comprovamos que num casamento as pessoas precisam estar prontas para o Outro e para o que ele traz consigo. É muito fácil está ao lado de pessoas bem resolvidas, sem problemas... Mas, onde estão essas pessoas estão? Será alguém bem resolvido neste mundo? Só nos resta, então, dizer: Muito obrigada, Carol, por nos dar a oportunidade de comprovar a nossa tese de que a convivência a dois precisa de uma cumplicidade diária!




Olhos


Calafrios, desde os 17 anos. Porém, o refazer-se diário transportava-a para o absurdo do não-ser, do esquecer-se de sentir a si mesma. Vivia como aqueles que passam e repassam na vida sem se darem conta do que são e do que poderiam ser.

Numa sexta-feira, comum e fria, voltava de sua habitual e única distração: o cinema. Sessão das 10h. Ensaio sobre a cegueira. Como uma criança que não tem pressa em terminar o sorvete numa tarde de verão, Júlia anda devagar até o ponto de ônibus revivendo as cenas do filme. Já tinha lido o livro. Mais um daqueles que nos “obrigam a parar, fechar os olhos e ver”. Mais um que a inquietou... mas não quis pensar. “A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Não, não queria pensar.

No ponto, ninguém. Espera...

Nada, a não ser a companhia de seus velhos calafrios.

Um barulho. O ônibus? Não. Faróis? Não. Olhos??? Sim! Negros, tristes e ofuscantes. Brasas cálidas que vinham em sua direção...

Júlia? Estátua presa, prostrada no asfalto. A garganta seca, trancada. O grito gritando, encarcerado.

Com a angústia daqueles que não podem correr, tampouco fugir, ou retirar-se às pressas, ela se entrega, quieta e trêmula, esperando.

Naquele corpo inerte, só os olhos viviam e viam. As lâmpadas, os cartazes, tudo estava na mesma ordem. Pessoas preocupadas com as suas próprias angústias e medos apareceram, passavam por ali, sem a perceber.

Um senhor encurvado pelo tempo, despercebidamente, esbarra-se na peça fazendo-a se mover alienada de volta ao ponto. Olha ao redor, a rua, e não os vê mais. Mesmo assim, sabia que eles estavam ali, olhando, sentindo e visitando-a com toda a intimidade dos amantes que nunca se despedem, como aqueles que insistem em ficar sem serem convidados.

O ônibus. Maquinalmente, entra e senta.

Abre o chuveiro. Liga a TV e dorme.

Estava numa fazenda abandonada. Santa Luzia era o nome escrito num pedaço de madeira, agora, habitado pelas formigas. Olha ao redor sentindo aquela terra triste, calcinada pela ausência. Ela também se sentia só...

Depois de andar por duas horas avistou uma velha casa de taipa. Os ossos à mostra, a pele comida por ele, o tempo.

-Será que há alguém?, perguntava a si mesma.

Esperançosa, seguiu até a pequena porta que, rangendo aqueles velhos ossos, abriu-se convidando-a.

Respira fundo.

- Eu vou?!!

E foi. Acompanhada dos seus velhos e íntimos calafrios, penetrou naquela irresistível desconhecida.

Procura. Inquieta-se. Procura...

Espera... Espera...

Um baque. A porta.

A fria escuridão. O medo.

-De quê? De quem?

-Medo do medo, respondia o vento que soprava lá fora.

Sofria, mas não chorava. Tateando no nada encontrou a parede. Ossos expostos. Trêmula, encolhe-se, contrai-se e, cerra os seus inúteis olhos deixando-se vencer sem lamúrias.

Naquele canto da sala, ela não pensa, não respira, nem chora, apenas se encolhe diante do desconhecido, do escuro, do beco sem saída que, por muitas vezes, encontramos em nossos caminhos. Lá fora, o vento sopra e agita-se na produção de uma espécie de lamento.

Júlia tem muitos medos. Contrai-se. Ulterinamente, se encolhe, e, a medida que os medos vão crescendo sente-se cada vez menor. Criança com medo do escuro, com medo de crescer. Está só de novo...

Dorme. Pela manhã, decide-se como a adulta que é: abrirá os olhos! Como um recém-nascido, germinando por anos, finalmente, decide-se. Esforça-se para sair da escuridão.

-Sim, o sol está do outro lado da porta!, diz para si mesma.

-Sim, eu consigo!, insiste.

Pensa em rezar, conforme havia aprendido na primeira comunhão, mas reza algo liturgicamente desconhecido. Não importa, reza e se encoraja.

-Vou abri-los, esforça-se.
Abre-os. Mas...

...só sente um oco.

O oco vazio.

O oco vazio do nada.

Gritos... (os insistentes toques do despertador).


sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Aos encontros

Há encontros que são sempre desejados
Uns veem seus desejos realizados
Outros, como eu, sonham...

Cheguei ao Aeroporto do Galeão às 17hs.
De lá, seguir, ansiosa, para um encontro na Av. Atlântida.
Há muito tempo, tento marcar este encontro...
Ele sempre ocupado com os seus textos dramáticos, suas crônicas, seus contos, seus desafetos...
Cheguei.
Desço do táxi e vejo, na varanda de um restaurante, ele.
Os suspensórios; o cigarro ordinário, entre os dedos; um cafezinho, ao lado.
Olhava para as meninas que passavam...
Não me conhecia, não sabia quem, de fato, eu era e aceitou este encontro!?
Fiquei, ainda, uns 18 min, olhando-o, emocionada.
Me aproximo e digo: - Nelson? 
Ele me olha e se lembra o porquê de estar ali: - Solange? Que prazer em conhecê-la!! Sente-se. Alguma coisa? Um cigarro?
- Não antes de um abraço...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A carta

Depois de dois anos de casada, Amélia continuava vivendo como uma moça aflita de emoções e cansada daquela mesmice de mulher séria e respeitável. O marido, Augusto, trabalhava na Petrobrás e por isso viajava muito. Estava, quase todo tempo, no Rio de Janeiro, deixando a mulher aos cuidados do amigo Sebastião e da empregada Aurora.

Amélia acordava às 10h e permanecia na cama até as 12h. Gostava de ficar de camisola, lendo os seus adoráveis romances. Agora lia A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. E, a cada página, um suspiro de nostalgia que lhe cortava o peito. Queria tanto ser Marguerite Gautier que quando lia o romance esquecia-se de tudo e de todos. Imaginava a cena na qual Armand é apresentado a ela e ouvia Prudence, sua vizinha, lhe dizer que ele estava apaixonado... Amélia, decididamente, tomava o lugar de Marguerite para viver aquela história de amor, sem, é claro, sofrer as sanções que aquela sofrera.

Pensava em Augusto vez por outra e, principalmente, quando precisava de dinheiro para pagar seus luxos de burguesa de classe média. No resto, o marido não era o que sonhara. Não era romântico, nem tinha os galanteios que os personagens, imaginados e amados por ela, tinham. Casou-se porque tinha que ser assim... Para marido cumpridor de seu dever, Augusto servia. Além disso, ele não podia ser mais do que era.

Antes de se casar, Amélia teve apenas dois namorados. O primeiro foi Lúcio, amigo de seu irmão Joaquim, e que logo a decepcionou pelo seu temperamento machista e conservador. Já o segundo, Carlos, a agradou mais do que desejou. Recitava poesias, mandava-lhe flores, era gentil, cheio de galanteios e sempre lhe beijava como se fosse o último beijo de suas vidas. Aquilo a fazia estremecer e um frio lhe descia pelo corpo parando ali, onde as formigas imaginárias festejavam a sua ânsia de entrega.

Esse namoro durou apenas 06 meses. Carlos foi ao Rio Grande do Sul resolver alguns problemas de família. Amélia ainda esperou por 02 anos, mas ele não deu notícias e nem lhe mandou, pelo menos, uma carta.

Foi com o coração partido que encontrou Augusto. Moço promissor, assim disse seu pai. Já ela, pouco se importava com os elogios paternais ao seu novo pretendente, ainda sonhava com Carlos. Entretanto, o tempo é cruel e como ela já se aproximava dos 20 anos, o melhor foi se casar com aquele moço bom e gentil.

Depois do casamento, Amélia já não pensava tanto em Carlos. Havia substituído-o pelos rapazes que viviam escondidos nas páginas de seus livros. Não foram poucas as vezes, que sonhou com todos aqueles homens. Estava sempre nua, numa grande cama, e ao seu lado um homem forte, bonito e muito sedutor que a tocava luxuriosamente.

- Ah, como sou feliz!! Suspirava Amélia enquanto se entregava à eles.

Não houve como escapar: tornou-se amante de todos. E sempre que podia se transportava para a alcova do prazer, ali era feliz e era mulher. Ali, ela não precisava ter pudores nem os receios que a possuíam quando fazia amor com o marido de comportamento amoroso regrado.

- A mulher tem que ser séria até na cama, dizia Augusto. Eu não quero que a minha esposa peque nem comigo!

Ela concordava, beijando-o na testa.

Aurora, a sua empregada, vivia nos fundos da casa, num quartinho imundo e pequeno. Foi dama de companhia da mãe de Augusto e quando a velha faleceu ela pediu para ficar cuidando da casa e de D. Amélia. Augusto, com pena, concordou. Amélia detestou. Não gostava daquele olhar interrogador, mas para não contrariar o marido, aceitou-a. Quase nunca se falavam e quando isso acontecia Amélia só ordenava e a humilhava. Isso também lhe dava prazer... Assim viveram, todos numa eterna repetição, até o dia 12 de dezembro, uma semana antes do aniversário de Augusto.

Amélia foi até o centro para comprar algumas coisas para festa que sempre faziam naquela data. Festa não, uma reunião com Sebastião, ela e Augusto. Detestava aquilo, queria mais luxo, mais ostentação, mas o marido não era chegado a essas coisas.

Passa pela Delicatessen, vai ao Shopping e no ponto de táxi alguém a toca no ombro, vira-se e vê incrédula, Carlos. Reconheceu-o pelos olhos. Eram os mesmos.

- Amélia? Nem acredito. É você mesmo?

- Sim. Carlos? O que faz aqui?? (excitada)

O seu coração parecia que ia saltar pela boca. Um frio pelo corpo a fez gelar e tremer por dentro. Sempre sonhou com aquele reencontro, ao acaso.

Deixa o táxi e vão para uma lanchonete ali perto. Sentam e passam uma eternidade calados. Olham-se como da primeira vez.

- Você continua linda!

Excitada, Amélia fica vermelha e mal responde.

- O que há? Está tudo bem contigo? Não quer falar comigo? Vou-me então...

- Não, fica! É que estou surpresa. Nunca pensei em revê-lo (mentira). Faz muito tempo... e agora, você aqui, na minha frente. Nem parece real.

- Voltei para procurá-la. Nunca a esqueci, nem pude! Desde que partir que a trago aqui... (aponta para o peito). Ah, Amélia como sofri até o dia de hoje. Como me lamentei ter te perdido para outro. Por quê? Sempre me pergunto. Por que a vida fez isso conosco? Mandei-lhe cartas e você só me respondeu a primeira, e com muito rancor. Nem acreditei quando a li. Não podia ser você. Mas era...

Surpresa, ela não sabia o que dizer. Carta? Que carta? Nunca recebera nenhuma carta dele.

- Carlos, eu nunca recebi nenhuma carta sua, tampouco lhe respondi. Que história é essa?

Carlos tira um envelope amarelado pelo tempo e gasto de tanto ser tocado e lido por ele do bolso. Amélia não acredita, era a letra de Augusto!

- Meu Deus, como pôde? Ele sabia de nós dois? Como pôde fazer isso comigo?

Carlos tenta acalmá-la, mas é impossível. Amélia já estava descontrolada e com o coração em migalhas, despedaçado por aquela verdade. Levanta-se e diz adeus aquele homem que tanto desejou, mas que não foi capaz de fazer o que Augusto fez: Mentir e tripudiar pelo seu amor. Só quem ama muito é capaz de tal artimanha, pensou.

Retornou à sua casa mais mulher e feliz. Enfim, vivia um pouco daquelas histórias que tanto lera e invejara...


P.S.: Ainda na UEFS, em 2008, ao estudarmos o realismo português com o Prof. Cid Seixas, foi proposto à nossa turma que redigisse um texto literário a partir de dois romances de Eça de Queirós: O crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Aceitei o desafio e "parir" isso a partir do segundo romance. Sempre que o leio rio muito, pois tenho a sensação de está assistindo uma novela mexicana...