"O irônico é uma vampira que sugou o sangue de seu amante e o abanou com frescor, o embalou até dormir e o atormenta com sonhos turbulentos" (Soren Kierkegaard. In: The Concept of Irony).

sábado, 25 de setembro de 2010

Olhos


Calafrios, desde os 17 anos. Porém, o refazer-se diário transportava-a para o absurdo do não-ser, do esquecer-se de sentir a si mesma. Vivia como aqueles que passam e repassam na vida sem se darem conta do que são e do que poderiam ser.

Numa sexta-feira, comum e fria, voltava de sua habitual e única distração: o cinema. Sessão das 10h. Ensaio sobre a cegueira. Como uma criança que não tem pressa em terminar o sorvete numa tarde de verão, Júlia anda devagar até o ponto de ônibus revivendo as cenas do filme. Já tinha lido o livro. Mais um daqueles que nos “obrigam a parar, fechar os olhos e ver”. Mais um que a inquietou... mas não quis pensar. “A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Não, não queria pensar.

No ponto, ninguém. Espera...

Nada, a não ser a companhia de seus velhos calafrios.

Um barulho. O ônibus? Não. Faróis? Não. Olhos??? Sim! Negros, tristes e ofuscantes. Brasas cálidas que vinham em sua direção...

Júlia? Estátua presa, prostrada no asfalto. A garganta seca, trancada. O grito gritando, encarcerado.

Com a angústia daqueles que não podem correr, tampouco fugir, ou retirar-se às pressas, ela se entrega, quieta e trêmula, esperando.

Naquele corpo inerte, só os olhos viviam e viam. As lâmpadas, os cartazes, tudo estava na mesma ordem. Pessoas preocupadas com as suas próprias angústias e medos apareceram, passavam por ali, sem a perceber.

Um senhor encurvado pelo tempo, despercebidamente, esbarra-se na peça fazendo-a se mover alienada de volta ao ponto. Olha ao redor, a rua, e não os vê mais. Mesmo assim, sabia que eles estavam ali, olhando, sentindo e visitando-a com toda a intimidade dos amantes que nunca se despedem, como aqueles que insistem em ficar sem serem convidados.

O ônibus. Maquinalmente, entra e senta.

Abre o chuveiro. Liga a TV e dorme.

Estava numa fazenda abandonada. Santa Luzia era o nome escrito num pedaço de madeira, agora, habitado pelas formigas. Olha ao redor sentindo aquela terra triste, calcinada pela ausência. Ela também se sentia só...

Depois de andar por duas horas avistou uma velha casa de taipa. Os ossos à mostra, a pele comida por ele, o tempo.

-Será que há alguém?, perguntava a si mesma.

Esperançosa, seguiu até a pequena porta que, rangendo aqueles velhos ossos, abriu-se convidando-a.

Respira fundo.

- Eu vou?!!

E foi. Acompanhada dos seus velhos e íntimos calafrios, penetrou naquela irresistível desconhecida.

Procura. Inquieta-se. Procura...

Espera... Espera...

Um baque. A porta.

A fria escuridão. O medo.

-De quê? De quem?

-Medo do medo, respondia o vento que soprava lá fora.

Sofria, mas não chorava. Tateando no nada encontrou a parede. Ossos expostos. Trêmula, encolhe-se, contrai-se e, cerra os seus inúteis olhos deixando-se vencer sem lamúrias.

Naquele canto da sala, ela não pensa, não respira, nem chora, apenas se encolhe diante do desconhecido, do escuro, do beco sem saída que, por muitas vezes, encontramos em nossos caminhos. Lá fora, o vento sopra e agita-se na produção de uma espécie de lamento.

Júlia tem muitos medos. Contrai-se. Ulterinamente, se encolhe, e, a medida que os medos vão crescendo sente-se cada vez menor. Criança com medo do escuro, com medo de crescer. Está só de novo...

Dorme. Pela manhã, decide-se como a adulta que é: abrirá os olhos! Como um recém-nascido, germinando por anos, finalmente, decide-se. Esforça-se para sair da escuridão.

-Sim, o sol está do outro lado da porta!, diz para si mesma.

-Sim, eu consigo!, insiste.

Pensa em rezar, conforme havia aprendido na primeira comunhão, mas reza algo liturgicamente desconhecido. Não importa, reza e se encoraja.

-Vou abri-los, esforça-se.
Abre-os. Mas...

...só sente um oco.

O oco vazio.

O oco vazio do nada.

Gritos... (os insistentes toques do despertador).


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