"O irônico é uma vampira que sugou o sangue de seu amante e o abanou com frescor, o embalou até dormir e o atormenta com sonhos turbulentos" (Soren Kierkegaard. In: The Concept of Irony).

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A carta

Depois de dois anos de casada, Amélia continuava vivendo como uma moça aflita de emoções e cansada daquela mesmice de mulher séria e respeitável. O marido, Augusto, trabalhava na Petrobrás e por isso viajava muito. Estava, quase todo tempo, no Rio de Janeiro, deixando a mulher aos cuidados do amigo Sebastião e da empregada Aurora.

Amélia acordava às 10h e permanecia na cama até as 12h. Gostava de ficar de camisola, lendo os seus adoráveis romances. Agora lia A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. E, a cada página, um suspiro de nostalgia que lhe cortava o peito. Queria tanto ser Marguerite Gautier que quando lia o romance esquecia-se de tudo e de todos. Imaginava a cena na qual Armand é apresentado a ela e ouvia Prudence, sua vizinha, lhe dizer que ele estava apaixonado... Amélia, decididamente, tomava o lugar de Marguerite para viver aquela história de amor, sem, é claro, sofrer as sanções que aquela sofrera.

Pensava em Augusto vez por outra e, principalmente, quando precisava de dinheiro para pagar seus luxos de burguesa de classe média. No resto, o marido não era o que sonhara. Não era romântico, nem tinha os galanteios que os personagens, imaginados e amados por ela, tinham. Casou-se porque tinha que ser assim... Para marido cumpridor de seu dever, Augusto servia. Além disso, ele não podia ser mais do que era.

Antes de se casar, Amélia teve apenas dois namorados. O primeiro foi Lúcio, amigo de seu irmão Joaquim, e que logo a decepcionou pelo seu temperamento machista e conservador. Já o segundo, Carlos, a agradou mais do que desejou. Recitava poesias, mandava-lhe flores, era gentil, cheio de galanteios e sempre lhe beijava como se fosse o último beijo de suas vidas. Aquilo a fazia estremecer e um frio lhe descia pelo corpo parando ali, onde as formigas imaginárias festejavam a sua ânsia de entrega.

Esse namoro durou apenas 06 meses. Carlos foi ao Rio Grande do Sul resolver alguns problemas de família. Amélia ainda esperou por 02 anos, mas ele não deu notícias e nem lhe mandou, pelo menos, uma carta.

Foi com o coração partido que encontrou Augusto. Moço promissor, assim disse seu pai. Já ela, pouco se importava com os elogios paternais ao seu novo pretendente, ainda sonhava com Carlos. Entretanto, o tempo é cruel e como ela já se aproximava dos 20 anos, o melhor foi se casar com aquele moço bom e gentil.

Depois do casamento, Amélia já não pensava tanto em Carlos. Havia substituído-o pelos rapazes que viviam escondidos nas páginas de seus livros. Não foram poucas as vezes, que sonhou com todos aqueles homens. Estava sempre nua, numa grande cama, e ao seu lado um homem forte, bonito e muito sedutor que a tocava luxuriosamente.

- Ah, como sou feliz!! Suspirava Amélia enquanto se entregava à eles.

Não houve como escapar: tornou-se amante de todos. E sempre que podia se transportava para a alcova do prazer, ali era feliz e era mulher. Ali, ela não precisava ter pudores nem os receios que a possuíam quando fazia amor com o marido de comportamento amoroso regrado.

- A mulher tem que ser séria até na cama, dizia Augusto. Eu não quero que a minha esposa peque nem comigo!

Ela concordava, beijando-o na testa.

Aurora, a sua empregada, vivia nos fundos da casa, num quartinho imundo e pequeno. Foi dama de companhia da mãe de Augusto e quando a velha faleceu ela pediu para ficar cuidando da casa e de D. Amélia. Augusto, com pena, concordou. Amélia detestou. Não gostava daquele olhar interrogador, mas para não contrariar o marido, aceitou-a. Quase nunca se falavam e quando isso acontecia Amélia só ordenava e a humilhava. Isso também lhe dava prazer... Assim viveram, todos numa eterna repetição, até o dia 12 de dezembro, uma semana antes do aniversário de Augusto.

Amélia foi até o centro para comprar algumas coisas para festa que sempre faziam naquela data. Festa não, uma reunião com Sebastião, ela e Augusto. Detestava aquilo, queria mais luxo, mais ostentação, mas o marido não era chegado a essas coisas.

Passa pela Delicatessen, vai ao Shopping e no ponto de táxi alguém a toca no ombro, vira-se e vê incrédula, Carlos. Reconheceu-o pelos olhos. Eram os mesmos.

- Amélia? Nem acredito. É você mesmo?

- Sim. Carlos? O que faz aqui?? (excitada)

O seu coração parecia que ia saltar pela boca. Um frio pelo corpo a fez gelar e tremer por dentro. Sempre sonhou com aquele reencontro, ao acaso.

Deixa o táxi e vão para uma lanchonete ali perto. Sentam e passam uma eternidade calados. Olham-se como da primeira vez.

- Você continua linda!

Excitada, Amélia fica vermelha e mal responde.

- O que há? Está tudo bem contigo? Não quer falar comigo? Vou-me então...

- Não, fica! É que estou surpresa. Nunca pensei em revê-lo (mentira). Faz muito tempo... e agora, você aqui, na minha frente. Nem parece real.

- Voltei para procurá-la. Nunca a esqueci, nem pude! Desde que partir que a trago aqui... (aponta para o peito). Ah, Amélia como sofri até o dia de hoje. Como me lamentei ter te perdido para outro. Por quê? Sempre me pergunto. Por que a vida fez isso conosco? Mandei-lhe cartas e você só me respondeu a primeira, e com muito rancor. Nem acreditei quando a li. Não podia ser você. Mas era...

Surpresa, ela não sabia o que dizer. Carta? Que carta? Nunca recebera nenhuma carta dele.

- Carlos, eu nunca recebi nenhuma carta sua, tampouco lhe respondi. Que história é essa?

Carlos tira um envelope amarelado pelo tempo e gasto de tanto ser tocado e lido por ele do bolso. Amélia não acredita, era a letra de Augusto!

- Meu Deus, como pôde? Ele sabia de nós dois? Como pôde fazer isso comigo?

Carlos tenta acalmá-la, mas é impossível. Amélia já estava descontrolada e com o coração em migalhas, despedaçado por aquela verdade. Levanta-se e diz adeus aquele homem que tanto desejou, mas que não foi capaz de fazer o que Augusto fez: Mentir e tripudiar pelo seu amor. Só quem ama muito é capaz de tal artimanha, pensou.

Retornou à sua casa mais mulher e feliz. Enfim, vivia um pouco daquelas histórias que tanto lera e invejara...


P.S.: Ainda na UEFS, em 2008, ao estudarmos o realismo português com o Prof. Cid Seixas, foi proposto à nossa turma que redigisse um texto literário a partir de dois romances de Eça de Queirós: O crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Aceitei o desafio e "parir" isso a partir do segundo romance. Sempre que o leio rio muito, pois tenho a sensação de está assistindo uma novela mexicana...

Um comentário:

  1. Sol, tem um pouco de novela mexicana, sim, mas não chama o teu conto de "isso". Gostei do final, me surpreendeu. (risos)

    P.S: Adorei o novo título do blogue. Bjs

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